"Cada um dos gigantes tem um incentivo para proteger áreas específicas de interesse próprio, mesmo quando isso entra em conflito com uma resolução eficiente das crises", escreveu Gabriel Sterne, num relatório sobre a relação entre o FMI e a China no contexto da nova arquitetura financeira.
"Algumas práticas questionáveis da China fortaleceram a determinação do FMI em oporem-se à vontade do país de ter melhores condições nas reestruturações da dívida, e a China, por seu lado, também tem direito a estar ressentida pelo facto de os principais contornos dos termos da resolução da dívida discriminarem contra a arbitrariedade dos empréstimos chineses", acrescentou o analista, num relatório.
Na extensa análise, enviada aos clientes e a que a Lusa teve acesso, Gabriel Sterne argumenta que "não há uma solução rápida" para a competição pela supremacia no desenho da nova arquitetura financeira mundial.
"É improvável que a China ceda completamente; é ainda menos plausível que os financiadores multilaterais de projetos cedam o seu injustificável tratamento preferencial nas reestruturações da dívida; mesmo que os acordos de reestruturação sejam implementados em casos que vão servir de exemplo, como na Zâmbia e no Sri Lanka, isso não vai criar um precedente definitivo, já que as fissuras entre a China e o FMI são demasiado profundas".
A análise de Sterne incide sobre as diferenças entre a China e o FMI não só na abordagem aos países endividados, mas também aos mecanismos de resolução da dívida e ao papel de cada um destes intervenientes no futuro.
Nos últimos anos, a China tornou-se um parceiro incontornável no panorama mundial, sendo um dos principais investidores em África e um dos maiores credores dos países africanos, que constituem uma boa parte dos países mundiais em sobre-endividamento e com dificuldades em servir a dívida e, ao mesmo tempo, lançar os investimentos públicos necessários para sustentar o desenvolvimento.
Os credores oficiais internacionais têm criticado a postura da China em não aceitar perdas nos empréstimos soberanos, mas também são críticos da opacidade dos termos dos empréstimos, das consequências do incumprimento, que chegam ao corte de relações diplomáticas, e do facto de a China emprestar sem exigir contrapartidas em termos de reformas económicas ou políticas.
A necessidade de uma nova arquitetura mundial tornou-se mais premente no seguimento da crise da pandemia de covid-19, que afundou as economias e foi particularmente dura para os países da África subsaariana, retirando-lhes ainda mais espaço de manobra orçamental.
Depois de um período em que foram lançadas medidas de alívio da dívida, como a Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida (DSSI) ou o Enquadramento Comum, o resultado é que nenhum país conseguiu ainda terminar um processo de reestruturação da sua dívida pública, e o FMI tem agora programas de ajustamento financeiro em mais de metade dos países da região.
"Há uma crise existencial no FMI, já que há vários cenários plausíveis que acabam com a função mais importante do Fundo: emprestar dinheiro aos membros em dificuldades", escreve o analista, apontando que, para os detentores de títulos de dívida, os cenários também não são positivos.
"Para os detentores de títulos de dívida, esta incerteza sobre a futura arquitetura financeira implica que é necessário adicionar um prémio de risco à dívida dos países, o que, por seu lado, pode acelerar o afastamento dos países dos mercados financeiros", devido ao aumento do custo de emitir nova dívida.
Para os governos que enfrentam problemas em garantir a sustentabilidade da dívida, "os riscos de entrar numa reestruturação prolongada são os maiores da última geração", conclui o analista.
A Semana com Lusa