OPINIÃO

A SEMANA : Primeiro diário caboverdiano em linha

O outro lado do subúrbio da Praia: Coqueiro e a Sua Gente 02 Setembro 2023

Apelamos a todos “Fidjos de Koqueiro” que se sintam orgulhosos do bairro que os viu nascer, e de serem os precursores da paz, promovendo a felicidade urbana. Pois, uma comunidade não violento requer exatamente essa valorização da essência humana empática, solidária, prestativa e de harmonização dos ambientes de convívio.

Por: Sandra Mendonça

O outro lado do subúrbio da Praia:  Coqueiro e a Sua Gente

O bairro de Coqueiro situa-se no vale que separa Achada Mato e Paiol, na margem da Ribeira de Castelão. Com mais de 100 anos de história, o nome Coqueiro surge segundo sua gente, pelo fato de antigamente existia neste bairro a planta Coqueiro, ao redor de um poço e uma ribeira com uma nascente de água, na época da chuva. Nesta ribeira as mulheres aproveitavam a água para lavarem as roupas, apanhavam areia, e cascalhos para construção de suas casas. Além dessas particularidades, no bairro de Coqueiro identificam-se vários marcos históricos, com contribuições da sua gente que de uma forma ou de outra fazem parte do seu percurso e desenvolvimento, digno de destaque em várias vertentes, nomeadamente nos domínios de saúde, educação, cultura, desporto, ação social e outros, conforme se segue:

Na Saúde destacou-se a sra. Joanita Lopes ou “Tu” era designada como parteira do bairro. Muitos de nós, filhos deste bairro, provavelmente, ouvimos dos nossos avós as histórias e o papel desta senhora no nascimento dos nossos pais e irmãos. Um caso particular, recordo-me de uma situação onde chamaram o sr. Ano Novo, uns dos moradores que naquela época, entre os poucos, tinha uma viatura para socorrer a filha da sra. Joanita que estava em pleno trabalho de parto. Entretanto, com o passar do tempo, a bolsa de água tinha estourado e a sra. Bei, deu à luz a filha Jaqueline em casa. Logo, a sra. Joanita teve que entrar em cena como parteira para ajudar e concluir o serviço de parto em casa, isto em 1985. No grupo das parteiras, temos ainda a Sra. Fidja Varela que também contribuiu com a sua experiência, no nascimento das crianças do bairro, cujas mães deram à luz em casa.

Na educação/justiça identificamos a contribuição do sr. Filipe Santiago, mais conhecido por “sr. Lã”, desenhador de profissão, que era fabricante de giz e escultor. Na casa do senhor Lã produzia-se giz que depois eram arrumadas nas caixas, com o apoio do senhor Panpalache e filhos. O giz era produzido numa máquina artesanal e colocado a secar no terraço. Durante muito tempo, várias escolas do país usavam o giz produzido no bairro de Coqueiro, para escreverem no quadro negro dos estabelecimentos do ensino. O sr. Lã também desempenha outro papel no bairro como presidente da comissão de moradores, onde todos os despachos de atribuição de terrenos para construção bem como a sua legalização passavam pela sua apreciação e logo depois dava-se o seguimento junto da instituição competente na altura. Também havia naquela época o chamado Tribunal de Zona que abarcava Coqueiro e arredores, cujo objetivo era realizar julgamentos de pequenas causas de desentendimento dos moradores, no qual contava com a participação do sr. Lã. Havia ainda, o grupo chamado Milícias que usavam “manduco” ou pau, para colocar ordem no bairro. Entre os moradores que desempenharam este papel, identificamos os irmãos Pedrinho e Kode. Destacaram-se ainda na educação, o papel do senhor Eduardo Cardoso, professor reformado, que através da cooperativa Adalgisa Moniz, mantém a parceria de cooperação com escolas Portuguesas, que desde 1998 tem conseguido financiamento de bolsas para formação de jovens locais, tanto no ensino médio, como no ensino superior. O sr. Eduardo também era gestor da cooperativa, no espaço Sapa Coco, a primeira cooperativa comercial de produtos alimentícios, para a comunidade e arredores, cuja vendedora era a sra. Rosa de Niza.

Cultura e várias referências relevantes

● Na Cultura o bairro é reconhecido por várias personalidades para destacar a contribuição no batuque, na dança, na música, nas festas religiosas, na gastronomia e em outras actividades de lazer:

i) No Batuque temos Tomás Rocha dos Reis Borges, mais conhecido por “Nhô Tomás”, Puti Moreira e Zézé, que eram cantores e dançarinos do batuque. Estes senhores mobilizavam o bairro nas festividades do Santo Padroeiro do Paiol e Coqueiro, designado “Santa Cruz”. Realçamos ainda, um outro momento marcante que os mesmos senhores entraram em cena, no evento denominado “Reza”. Reza é realizada nas cerimónias fúnebres de um vizinho ou ente querido, logo após a missa do sétimo dia após o falecimento. Neste dia, ao anoitecer, os vizinhos se reúnem na casa do malogrado para rezarem o terço, cantarola religiosa, comem e bebem, até o amanhecer, onde se levanta a esteira, como é conhecido na nossa tradição. Um outro momento relevante no bairro de Coqueiro, era a fogueira de São João, em frente a casa do Nhô Tomás, onde os moradores saltavam o fogo com Ovo e Sal, crença antiga cultivada até hoje na cultura cabo-verdiana. Por fim, que criança não se recordava do aniversário do “Nhô Tomás”, no mês de Março? A comemoração deste dia iniciava com a Solenidade Religiosa, mobilizando várias crianças, todos entusiasmados e felizes, para a Igreja de Nossa Senhora da Graça, às 6 horas da manhã, acompanhados pelo aniversariante. Após a famosa missa, passavam pelo mercado do Platô para comerem bananas, antes de regressarem a casa. Ao chegarem ao bairro eram recebidos com foguetes, que marcavam a vinda do festeiro. Na casa do aniversariante era servido o café da manhã, para todas crianças e vizinhos, logo depois servia-se o almoço tradicional, terminava-se com o batuque, até o amanhecer. Nhô Tomás também era conhecido pelo famoso tambaco “kankan” que fazia com o louro torrado e pilado no pilão de ferro, da cor preta, para uso pessoal e venda.

ii) Na música, se recuamos aos anos 70, destaca-se Estevão Mendonça “Ano Novo”, que tocava viola, fazendo serenatas com músicas tradicionais ao anoitecer. Nesta época os homens apaixonados gostavam de cantar debaixo da janela das meninas a quem estes tinha interesse e faziam declarações através da música. Ano Novo ainda foi destacado pelo cantor Zézé de Nha Reinalda, numa das suas músicas, recordando a juventude, no bairro do Paiol, na casa de Tatina. Mais recentemente, deslumbra o cantor SOS Mocci D´Almeida, que vem se afirmando desde 2007, com várias atuações no país e na diáspora. Além da música, o cantor tem contribuído na promoção e no empoderamento dos jovens do bairro, motivos pelos quais foi destacado num mural com a sua imagem, no antigo “chafariz” do bairro. Vários outros jovens têm enveredados na música, como cantores de vários géneros musicais, entre os quais podemos realçar o Jonathan, 3Dson, Emidjey, ABemi e Mc loirasso. Para finalizar destacamos Carlos Pina que é prodígio em produção musical, e tem colaborado com artistas de renome, incluindo SOS Mucci.

iii) Na dança, mais especificamente a contemporânea, o sr. José Cardoso, mais conhecido por “Zeca de Siza”, Ferreiro de profissão, entretanto tem se destacado na dança. Zeca começou o seu percurso na dança 1994 e já trabalhou com Francisco Camacho, Vera Mantero, Clara Andermatt, Madalena Vitorino, Tamango entre outros. Em 2004, ingressou na companhia de dança “Raiz de Polon”, tendo participado em vários espetáculos, nacionais e internacionais, este filho de Coqueiro tem sido glorificado por todos. Em 2016 criou uma associação cultural, com objetivo de ensinar a dança para crianças de todas as idades. Como ativista social tem influenciado outros jovens do bairro a enveredar-se na dança. Nesta onda, surge o grupo de dança “Putos Madrugas” formado por jovens de Coqueiro, coordenado pelo Nhopas, com atuação e participação em vários eventos e concursos na capital.

No Desporto temos João Correia “Igor” e Ivan Fernandes “Alex” tem atuado na modalidade de Boxe. Igor como treinador tem influenciado outros jovens para esta modalidade e com a criação da escola “Kriol Boxe” no espaço de Sapa Coco, que tem contribuído na formação, na ocupação dos jovens no seu tempo livre para combater a violência urbana, um dos grandes flagelos da atualidade. Na modalidade de futebol o Jovem Stephanicol Gomes (Col de djudji) jogador federado, atualmente é treinador da Escola de Futebol Bola Bom, dinamizando treino para crianças e jovens nesta modalidade desportiva. Outrossim, um grupo de amigos formaram a equipe Dope Family, com participação nos torneios inter-bairros. Esta equipe já foi condecorada com três taças de diferentes torneios. Na equipe DopeFamily, destaca-se Mariano Mendonça “Lizito ", quem recentemente ganhou por duas vezes o título de melhor jogador da semana, no torneio inter-liceus, em representação do Liceu Domingos Ramos.Na modalidade do desporto náutico emerge Adilson Cardoso (Adydas) Instrutor de mergulho, no centro Orla kriolo, atualmente uma das maiores atrações da capital.

Na vertente social destaca-se a Sandra Mendonça, ativista social, que em 2011 fundou a “Associação Djunto para Desenvolvimento Comunitário do Coqueiro”, a primeira associação oficial criada no bairro. Isto com a parceria de outros jovens da comunidade: Adelton, Miguel Manu, Dica, Silvestre, Zeca di Ziza, Suzana, Nené, Denise, Sani, Anira, Elsa, Nonote, entre outros, que abraçaram esta causa social. Os membros da associação destacam-se pela grande obra de infraestruturação do bairro, a avenida de Coqueiro, na margem da ribeira e vários trabalhos comunitários, na educação ambiental, no combate à problemática do lixo, na formação e na dinamização de atividades lúdicas, em palestras, e feiras de saúde para crianças, jovens e adultos. Destacam-se ainda Admilson Mendes “Mimi” e Edite Cardoso “Dica”, que com outros jovens têm levando avante o projeto “Donu Nha Distinu”, com objetivo de prevenir a criminalidade juvenil através das ações de empoderamento comunitário, abrangendo os jovens da comunidade de Castelão e Coqueiro. Nesta senda, surge em 2022 a associação “Fidjos de Koqueiro”, que tem dado a continuidade das ações sociais e contribuindo nas actividades de promoção do bairro. Esta associação tem como destaque a realização da primeira feira de Torresmo, que mobilizou centenas de pessoas para degustar o torresmo, a cachupa e outros derivados do porco. Esta atividade tem como objetivo a elevação do Coqueiro como referência, na confecção de torresmo. Com este evento, Coqueiro ganhou a notoriedade nesta atividade comercial, onde existem mais de três gerações de história de mulheres e meninas que vendem torresmo como fonte de rendimento e sustento familiar. Eis algumas referências de mulheres que se destacam ao longo do tempo e contribuíram na venda de torresmo: Manazinha, Macha, Tereza, Elísia, Fininha, Nita, Filusa, Nonote, Nina, Mira, Ló, entre outras mulheres empreendedoras.

Outro momento histórico do bairro era o baile no Cambalacho, nome este derivado de uma novela brasileira que foi exibida na televisão nacional de Cabo Verde. Um dos organizadores do baile era Kode de Fidja, homem bastante respeitado pela ordem que impunha no espaço, frequentado por moradores e pessoas de outros bairros da capital. Com o baile no cambalacho algumas mulheres de Coqueiro aproveitavam para vender bebidas e petiscos. Muitos hão-de lembrar do pastel de milho de Niza, bastante apreciado pelos amantes desta gastronomia tradicional da nossa terra. Outro episódio particular para as crianças, é na festa de Cinza comemorada com os pratos tradicionais. Após o almoço de cinza as crianças, religiosamente, levam o cuscuz e o mel para comerem em cima da rocha que circunda o bairro, para deliciaram esta alegoria com os vizinhos. Esta rocha antigamente também servia para o batismo de boneca, um evento importante para as crianças do bairro. Nesta rocha existia uma planta que produzia uma fruta semelhante à uva, em que as crianças atiravam pedras para que a fruta caísse, para degustar. Também existia uma planta chamada “Choroteira” que as mulheres usavam quando sentiam dores de cabeça, colocando as folhas amarradas num lenço branco, muitos diziam que era um santo remédio caseiro.

Apelo aos filhos do Coqueiro

Naturalmente existem outras personalidades, momentos e marcos-históricos dignos de destaque que poderão ser evidenciados numa próxima oportunidade, considerando que este trata do primeiro ensaio, embebido de recordações e relatos de moradores que sustentaram esta partilha da história do bairro de “Coqueiro e sua Gente”. Esta viagem histórica com objetivo de ilustrar a outra face do subúrbio, que muitas vezes é conotada, é realçada pelos aspetos menos positivos e pela violência urbana nos meios da comunicação social.

Assim sendo, e para finalizar, acreditamos na população residente, e que muitos jovens são capazes de contribuir significativamente para o desenvolvimento socioeconómico e cultural do bairro de Coqueiro. Apelamos a todos “Fidjos de Koqueiro” que se sintam orgulhosos do bairro que os viu nascer, e de serem os precursores da paz, promovendo a felicidade urbana. Pois, uma comunidade não violento requer exatamente essa valorização da essência humana empática, solidária, prestativa e de harmonização dos ambientes de convívio.
Imagem: Autora de peça e Festival do Torresmo (Inforpress)

Os artigos mais recentes

100% Prático

publicidade


  • Mediateca
    Cap-vert

    Uhau

    Uhau

    blogs

    publicidade

    Sondagem

    La connexion au serveur mysql a �chou�, v�rifiez que le serveur MySQL fonctionne
    Ver todas as sondagens

    Newsletter

    Copyright 2018 ASemana Online | Crédito: AK-Project