LUSOFONIA

A SEMANA : Primeiro diário caboverdiano em linha

Piva, o saltimbanco que quer descentralizar a arte, está em Timor-Leste 08 Maio 2023

O saltimbanco brasileiro Rogério Piva, que já atuou em 38 países e está agora em Timor-Leste, considera que descentralizar e democratizar a arte é um gesto de revolução social, que promove a justiça e a inclusão.

 Piva, o saltimbanco que quer descentralizar a arte, está em Timor-Leste

Uma visão que se consolidou com o seu percurso de vida, desde a favela de Vila Guacuri, na periferia de São Paulo, onde vivia na marginalidade e na exclusão e onde aos seis anos viu o primeiro saltimbanco, profissão que acabaria por abraçar, ainda jovem.

“Trata-se de descentralizar e democratizar num mundo onde tudo virou uma mercadoria e onde mesmo a arte que se julga revolucionária, está limitada aos grandes centros, à elite, aos locais onde se tem que comprar entradas, o que exclui a grande maioria da população do mundo”, disse em entrevista à Lusa em Díli.

“Quando descentralizamos, garantimos justiça social. Venho de um local onde não tinha acesso a nada disto, e vou para locais onde não há nada disto. E isso também é a responsabilidade do artista”, enfatiza.

Piva está em Timor-Leste pela primeira vez para levar as artes do circo, do malabarismo e dos saltimbancos a comunidades retomas em todo o país, numa iniciativa da Presidência da República que financiou a maior parte dos custos e está a dar apoio logístico no terreno, com apoios adicionais da Fundação Oriente, da Embaixada do Brasil e dos Centros de Aprendizagem e Formação Escolar (CAFE).

“Não recebo qualquer cachê. Tive um apoio da Presidência, mas disse que queria trabalhar com comunidades, em espaços públicos e abertos. Usamos dinheiro público da Presidência, da Embaixada do Brasil ou da FO. Não vou usar dinheiro publico para fazer um show privado. Por isso só tudo aberto, nas comunidades”, vinca.

Aos 35 anos, e pela primeira vez em Timor-Leste, Piva recorda o período da sua infância, quando viu o primeiro saltimbanco que explicava, “enquanto passava o chapéu”, depois de um espetáculo, que viajava pelo mundo, a levar as suas artes.

“Isso alimentou-me muito. Até então, essa ideia de ser artista, não me passava pela cabeça. Vim de uma comunidade, de uma favela, da zona periférica de São Paulo, onde eu moro até hoje. Era um local muito violento, uma periferia abandonada, um local de grande risco social para os jovens”, conta.

“Eu era um moleque desses, que vivia na rua e também fazia besteiras. Não entrei para o tráfico, mas uma boa parte dos meus amigos entrou”, explica.

O abrir de portas para a arte que o leva pelo mundo desde 2016, chegou através de um primeiro projeto social na comunidade, que pretendia ajudar a tirar as crianças da rua, que “dava lanches, aulas de teatro, de artes plásticos e de circo”.

“Eu, pequeno, com seis, ia ao projeto praticamente para brincar e comer lanche. Passei pelo teatro, pela mésica e pela capoeira. Só comecei nos malabarismos aos 14 anos, e foi aí que me encontrei, depois de passar por tantas coisas”, relembra.

“Apaixonei-me e comecei a dedicar-me a isto. Comecei a trabalhar nas ruas, nos semáforos, reuni algum dinheiro para comprar aparelhos e fazer um figurino. Depois passei para pequenos circos, depois para circos grandes”, disse.

Hoje, nota, o circo está mais diversificado do que nunca, estando presente em teatros, em eventos, em grupos contemporâneos que apresentam espetáculos diferenciados dos tradicionais, ainda que estes continuem a existir por todo o mundo.

Mas também voltou às ruas, “como os antigos saltimbancos”, enfatiza, referindo que trabalhou em circos de todas as dimensões, em todo o mundo, até começar a questionar-se sobre o facto desses espetáculos não serem acessíveis para a maioria.

“Por isso quis fazer da minha arte uma arte descentralizada. Como venho do projeto social, de uma comunidade onde não tinha acesso a espetáculos, onde o meu pai não podia pagar o bilhete do circo, eu vi como a arte é transformadora da minha vida, e de muitos dos meus amigos, que estávamos à margem da sociedade”, refere.

“A arte para um pequeno da periferia, sem grandes perspetivas de vida, levou-me a viajar a 38 países, vencer prémios internacionais, fazer um show para o Papa Francisco no Vaticano, escrever livros. A arte tem um poder muito grande porque rompe com a barreira da desigualdade. Tem esse poder”, sublinha.

Um dos exemplos mais recentes do poder da arte de rua ocorreu na Papua Nova Guiné (PNG), onde esteve recentemente, e onde pode experimentar o impacto dos seus espetáculos em comunidades onde há violência e onde a tensão é palpável.

“A PNG é um local com muita violência entre clãs. Mas eu chegava e ocupava um espaço num mercado, às vezes em locais onde se sentia um clima muito tenso e quando começava o espetáculo, todo o muno esquecia a diferença, ficavam todos ali no mesmo círculo, rindo juntos”, disse.

“Por isso não quis ficar a trabalhar na Austrália, por exemplo. Quis vir para países como a PNG, ou agora para Timor-Leste. Por isso passei nove meses na África a viajar sozinho, quatro meses de mota pela Ásia, anos e anos pela América latina”, disse, explicando que o malabarismo tem uma linguagem universal.

Mais do que pensar apenas nas crianças, os espetáculos de Piva procuram chamar as famílias, para que acompanhem em conjunto, o que por outro lado ajuda a financiar a continuidade do projeto.

“As bolinhas, os malabares, são música para os olhos. Passam logo a mensagem, e depois complemento com um sorriso, que quebra a barreira da estranheza, do preconceito e abres portas”, disse.

“São as famílias que colaboram no meu show. Aqui em Timor-Leste é a primeira vez que tive um apoio, mas em todas as minhas viagens, percorrendo os locais, vou passando o chapéu, nessas comunidades. Colaboram como podem, com algum dinheiro, com gruta, ou um prato de comida, ou um local para dormir”, explica.

Isso leva a que afirme que o seu maior patrocinador é a população em geral, que o ajuda a levar a arte a ainda mais comunidades.
A Semana com Lusa

Os artigos mais recentes

100% Prático

publicidade


  • Mediateca
    Cap-vert

    Uhau

    Uhau

    blogs

    Copyright 2018 ASemana Online | Crédito: AK-Project