Introito
A récita de vida é um ramo dos estudos científicos dos mais complexos, por ser uma ciência transdisciplinar da história implicando problemas de método quer no tratamento biográfico, quer na abordagem teórica das fontes das diferentes perspetivas que se pretendem acentuar para os níveis da apreensão do real, da realidade formal vivida ou representada nos seus cruzamentos.
Enquanto Povo e Nação, como quaisquer outros, Cabo Verde tem um percurso histórico próprio, construído ao longo de séculos de caldeamento de agentes diversos de natureza humana, económica, social e cultural, num espaço físico e geográfico desafiante nas suas vulnerabilidades estruturais. Foram épocas marcadas por conjunturas de intensa violência do sistema de dominação e arbitrariedades escravocratas, as quais determinaram a emergência do cabo-verdiano enquanto entidade dotada de uma identidade política muito especifica que o caracteriza e distingue, ao mesmo tempo com encalços que o situam no contexto Universal das civilizações.
Esses momentos, ao longo dos tempos foram assinalados por contínuas e determinantes resistências e negações, sobretudo aos quantos pretenderam que o povo das ilhas refutasse, não tanto a sua condição, mas, sim, a afirmação dessa assertiva condição de Povo de uma Nação como coletividade ordenada e harmonizada, desafiando com triunfo final os arbítrios da dominação colonial.
Foi nos diferentes períodos dessa prossecução que o povo das ilhas alcançou maturidade política a partir da década de 60, condição decisória da reta final do processo que conduziu Cabo Verde a país livre e independente a 5 de Julho de 1975.
Como circunstância da história, esse longo percurso foi celebrizado por homens e mulheres notáveis patriotas, em várias frentes desses feitos memoráveis. O nosso país tem como marco maior desses figuras, a de AMILCAR CABRAL que, com patriotismo e heroísmo exemplares, interpretou com magnificência os mais profundos e genuínos anseios e expetativas do cabo-verdiano à sua condição de Povo e Nação.
Mas Cabral pode contar com outros notados patriotas que se juntaram a ele e aos seus ideais para, sobretudo na sua ausência física, marcarem com todo o peso da sua personalidade, os marcos mais relevantes da História moderna de Cabo Verde consubstanciada num singular entendimento da sua natureza e da razão do Homem.
De entre essas distinções, ocupa lugar cimeiro o cidadão e patriota, ARISTIDES MARIA PEREIRA, que a Fundação Amílcar Cabral achou por bem homenagear a 17 de Novembro, dia e mês de 1923, em que veio cumprir missão, trazendo para a nossa consciência histórica a marca dos precedentes de um ingente passado, e contribuir para dar a conhecer e cultivar a interpretação do intrépido cabo-verdiano, tornando inteligível um dos principais distintivos da nossa história recente, para uma melhor compreensão da nossa época em relação às nossas representações do presente e às nossas aspirações futuras, quanto ao passado nacional e construção de uma visão do futuro.
O que queremos mais à frente é convidar estudiosos e investigadores para uma análise tipológica necessariamente complexa, partindo da riqueza dos contributos fornecidos pelo Simpósio (realizado), para que se projete na omnipresença dos episódios, os valores marcantes de Aristides Pereira no modo de ser e de estar da Nação Cabo-verdiana, na expectativa de não deixar morrer e desaparecer na nossa sociedade um passado mais precioso que um futuro incerto, sobretudo num mundo atual de preocupantes incertezas futuras.
Ou melhor, há que se buscar os procedimentos e cultos comportamentais, bem como os modos de transmissão apropriados, que assegurem os entendimentos e coabitação precisos entre as gerações ascendentes e as gerações descendentes, sendo os legados de Aristides Pereira da maior valia e relevância para esse desiderato.
Fecundos primórdios
Aristides Maria Pereira nasceu no pacato povoado de Fundo das Figueiras da ilha da Boa Vista, penúltimo filho de Porfírio Pereira Tavares, sacerdote e professor régio dotado de ricos saberes, natural da Freguesia de S. Miguel do Concelho do Tarrafal na altura, ilha de S. Tiago, e de Maria das Neves da Cruz Silva, corajosa agricultora, nascida no povoado próximo de Cabeça dos Tarafes, os quais deram ao mundo mais 13 descentes.
Foi na humildade desse povoado e num ambiente familiar de muito rigor instrutivo do pai, que ele cresceu, muito especialmente sob os bons cuidados da irmã mais velha Estela, indo fazer os exames liceais em S. Vicente após preparação pelo pai de quem foi bom admirador, segundo a irmã Constantina, marcando para sempre a sua personalidade discreta e austera na forma de ser e estar na vida. Esse ambiente distante da superficialidade da vida mundana induziu nele o trato racional, organizado, sério, consciencioso e formalista convencional, mesmo que supostamente sedentário mas isolado na reflexão.
Convirá referir que esse período de infância e adolescência vivido na ilha da Boa Vista, foi também de secas, fomes, penúrias e epidemias, cujas causas datam dos séculos XVIII e XIX, com marcas profundas na vida das populações em termos de mortandades e outras sequelas, que muitas vezes ditaram a partida de certas famílias para outras ilhas como sendo S. Nicolau, Sal, Santiago e Fogo.
Após os estudos primários, de 1937 a 1944 dedica-se aos estudos secundários em S. Vicente, altura em que viveu a dura fome de 1939 e em que também conviveu com jovens da Academia Cultivar, regressando de seguida à Boa Vista.
Itinerários da maturidade
Terminados os estudos liceais, é na cidade da Praia que dá os primeiros passos da emancipação, primeiro como balconista numa casa comercial, e depois como radiotelegrafista nos CTT. Na Praia fez parte da direção do Boa Vista Futebol Clube. De novo assiste aos horrores da fome de 1947, sobretudo ao descaso com que as autoridades encaravam as dezenas de mortes diárias.
Tendo-se transferido para a Guiné-Bissau, aí passou por contratempos de saúde que o obrigaram a regresso a Cabo Verde e tratamento em S. Vicente por longo período de convalescença. Regressa à Guiné-Bissau onde a partir de 1954 passa a conviver com Amílcar Cabral e outros companheiros fundadores do PAIGC em 1956. Em 1959, também assiste ao massacre de Pidjiquiti que pela sua brutalidade repercute na estratégia dos protagonistas do PAIGC que decidem por um novo estádio de intervenção política.
Foi um período de maturação da consciência política nacionalista, tanto pelo papel desempenhado por Amílcar Cabral nesse despertar, como pelo período de conturbação política por que passava a África, muito em particular nas colónias francesas, o que explicará uma certa agitação no seio das elites guineense e cabo-verdiana. É nesse contexto que a 19 de Setembro de 1956, Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Luís Cabral, Fernando Fortes, Abílio Duarte e mais três camaradas, foi fundado o PAIGC.
Tendo Amílcar Cabral seguido para Conakry onde instalou o escritório do PAIGC, Aristides Pereira segue-lhe as pisadas, passando por Lisboa e Paris onde pôde encontrar-se com Marcelino dos Santos e Mário de Andrade. Nesse entrementes passou por Dakar, foi a Londres representar o Partido numa conferência de denúncia do colonialismo, passou de novo por Paris e por Dakar onde pôde ter encontros com Luís Cabral, os irmãos António e Rito Alcântara, Nha Laurinda, o libanês Naif Hilal, Viriato da Cruz, e outros patriotas.
Chegado a Conakry encontra-se com Amílcar Cabral mais a esposa Maria Helena e conhece tantos outros nacionalistas de Angola. Foi dos momentos mais marcantes no percurso político de Aristides Pereira, já que é nessa situação que inicia uma intensa atividade partidária de colaboração estreita com Amílcar Cabral nas frentes de mobilização política, mobilização e gestão de recursos, trabalho diplomático, comunicados, etc., sem esquecer as muitas privações a que estavam sujeitos, nomeadamente em termos de habitação e no plano alimentar.
Casou por procuração em 1959 com Carlina Fortes que viria por sua vez rumar para Conackry e juntar-se ao marido e às contingências de uma vida de privações e sacrifícios de uma entrega patriótica, na certeza mais tarde de que valeu a pena. Carlina Pereira tinha sido contabilista na firma Luso-Africana em S. Vicente, pelo que os seus conhecimentos foram de grande utilidade na organização do escritório. (Continua na próxima edião deste jrnal)
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* Sociólogo e presidente da Associação dos Combatentes da Liberdade da Pátria