Marcos da epopeia libertadora
Aristides Pereira viveu com Amílcar Cabral momentos desafiantes pela complexidade dos problemas que se colocaram e de que se destacam:
• A gestão dos militantes do MPLA presentes em Conakry em busca de uma retaguarda política;
• Os perigos enfrentados com a aquisição de armamento e seu desembarque em Conakry, que inclusivamente deram lugar à prisão dos principais responsáveis do PAIGC presentes na capital guineense;
• As disputas e combate a outros pretensos protagonistas da luta de libertação nacional;
• Os equilíbrios que tinham de ser entendidos com Senghor e com Sékou Touré;
• O desencadeamento da luta armada e todo o conjunto de problemas ou dificuldades de natureza logística e de formação político-militar que a abertura das frentes colocava;
• O dilema da luta em Cabo Verde: política e/ou militar, com os seus pesos e contrapesos;
• A gestão em contraponto da política por uma Guiné melhor de Spínola;
• A atividade diplomática;
• O controlo e administração das zonas libertadas;
• O acolhimento e enquadramento dos cabo-verdianos;
• A proclamação da independência da Guiné-Bissau em Madina de Boé.
Mas o que mais atingiu Aristides Pereira, para toda a vida, foi o assassinato de Amílcar Cabral, a 20 de Janeiro de 1973, o que entre outras questões relevantes a resolver, colocou o problema da sucessão num momento de forte sofrimento pelas mazelas físicas a que foi sujeito pelos homicidas, aliadas a pressões de natureza psicossomática de vária índole.
Após longo tratamento das sequelas das agressões de que foi vítima por parte dos traidores, acedeu à aceitação do cargo de Secretário-Geral do PAIGC. A carga da herança e das elevadas responsabilidades que isso significou, levaram a que Aristides Pereira revelasse toda a grandeza do seu ser, condição sine qua non para o sucesso da luta libertadora da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Foram momentos de profunda reflexão na humildade e profundo respeito pelos sagrados ensinamentos, princípios e valores herdados de Amílcar Cabral.
Os reptos da independência nacional de Cabo Verde
O 25 de Abril e a independência de Cabo Verde: para o PAIGC os acontecimentos em Portugal eram esperados já que se estava ao corrente do clima de descontentamento e revolta prevalecentes no seio das forças armadas portuguesas, face ao peso das derrotas no plano militar, como, também, o isolamento internacional de Portugal imposto pelo prestígio crescente dos movimentos de libertação das colónias portuguesas, sobretudo do PAIGC.
Para além do reconhecimento da independência da Guiné-Bissau por parte de Portugal, colocou-se a questão do reconhecimento do direito de Cabo Verde à autodeterminação e independência, cujas resistências do colonizador residiam principalmente em interesses de natureza estratégica que a localização das ilhas significava para os aliados de Portugal.
Aí veio ao de cima toda a lucidez dos dirigentes do PAIGC sob a discreta orientação de Aristides Pereira, que teve um encontro em Dakar com Mário Soares, onde ele deu o tom e a posição de sentido que viriam a nortear as reuniões que se seguiram em Londres, Argel e, finalmente, os acordos assinados em Portugal, tendo como perfeito negociador, o Comandante Pedro Pires.
Com a proclamação da independência nacional a 5 de Julho de 1975, etapa relevante de uma série épica de feitos e de incogitáveis custos, Aristides Pereira foi incumbido de guiar outros e maiores desafios de longa duração, mais complexos, mais exigentes, de maiores riscos e servidões. Tratou-se de gerir e apaziguar entendimentos e vias de vária índole muitas vezes contraditórios, de contornar as condições adversas herdadas de um colonialismo implacável, de enfrentar não como fatalidade mas com realismo e lucidez as duras vulnerabilidades da natureza das ilhas, de se confrontar com o país sem infraestruturas físicas e económicas, de vencer a pobreza generalizada prevalecente.
Com serenidade e firmeza de crença, soube apaziguar ou dissipar antagonismos ideológicos, harmonizar conflitos e contradições inquietos, conjugou valores culturais, promoveu solidariedades entre elites, apagou do espirito do cabo-verdiano o sentimento de fatalidade para fazer despertar nele a autoestima e a autoconfiança.
O país não possuía um centavo nos cofres das finanças, tinha pela frente a enorme tarefa de fazer erguer um Estado confiável em contraponto com uma administração pública marcadamente colonial, impunha-se contornar, com lucidez e pragmatismo, um contexto internacional de guerra fria e de violentos conflitos regionais, enfim, a gesta de mobilização de recursos que permitissem uma resposta efetiva às legítimas necessidades e exigências das populações, demais a mais num momento de três anos consecutivos de seca.
Com entusiasmo, o povo de Cabo Verde mobilizou-se nas grandes tarefas de reconstrução nacional tais como as campanhas de arborização, a construção de infraestruturas hidráulicas de conservação do solo e da água, o combate ao analfabetismo e a democratização do ensino básico, a proteção materno-infantil e o combate a doenças crónicas que grassavam o país, o desencravamento do território e as ligações marítimas entre as ilhas, o abastecimento de todas as ilhas em produtos alimentares básicos, etc., etc..
No cumprimento de encargos que lhe incumbiam, nas lides em que interveio, com verdade e dignidade plenas, com os seus companheiros e camaradas da luta, Aristides Pereira soube mobilizar vontades e esforços valorosos para tão grande patriotismo. Foi assim que conduziu de forma regente, uma política externa que deu boas provas, seja aos nossos parceiros de desenvolvimento que a pouco-e-pouco se abriram às nobres causas do PAIGC/PAICV, como ainda prestigiou o povo de Cabo Verde pela maneira sábia como geriu o desenvolvimento do país em condições que muitos consideraram impossível.
Aristides Pereira fez Cabo Verde ser conhecido e respeitado pela ONU, UA, UE e outras organizações internacionais, por potências mundiais e seus ilustres dirigentes, por renomadas personalidades desse mundo fora, pelo que desempenhou um papel de primeira grandeza na abertura das condições tão necessárias e úteis a um ambiente de cooperação para o desenvolvimento exemplar, como ainda conducentes à paz, em particular com diligências na busca de entendimentos a conflitos no nosso continente africano, sendo ainda de se destacar a habilidade como deu inicio ao processo que viria a confluir na libertação de Nelson Mandela e no fim do apartheid na África do Sul. Foi na ilha do Sal e outros pontos do território nacional, que foram dados os primeiros passos, sob a discreta peritagem de Aristides Pereira.
Foi prosseguindo esse caminhar de abertura de espirito e de entendimento para com os companheiros, de lucidez e rigor de análise fundadas na realidade, na sequência contínua de factos que operam certa unidade e regularidade de andamento do desenvolvimento, que foi conduzido o amadurecimento do país à acessão a Estado de Direito Democrático, sem convulsões, com apurado sentido de Estado e Nação sem precedentes.
Nos quinze anos da mais alta magistratura, Aristides Pereira foi ponderado, discreto, bom conselheiro, intransigente em princípios e valores, no rigor e desprendimento de ímpetos protagonistas, levou-nos a uma correta interpretação do nosso passado nacional para uma visão do futuro, inspirou-nos a concepção da boa sociedade, soube asseverar a independência nacional, nosso orgulho ... ... ... enobreceu Cabo Verde, bem alto!
Nessa trajetória única, mais uma vez Aristides Pereira deu provas do seu profundo apego à liberdade que fundou as razões maiores da luta de libertação nacional, soube absolver incompreensões muitas vezes, mais do que incivis, imerecidas e injustas.
Compromisso cumprido!
Soube retirar-se de consciência tranquila e retidão da perfeita noção do dever cumprido, sem deixar de, contudo, ficar marcado por sofrimentos penosos para a sua condição humana.
Para quem o conheceu bem, de entre os momentos mais dolorosos da gesta libertadora, marcou profundamente o Homem a perda da primeira filha, a Dulce Irene, em circunstâncias custosas dadas as condições de vida impostas pelos sacrifícios da luta.
E já no país independente, sofreu o grande pesar da sua vida, a perda do filho mais velho, o Eugénio, vítima de doença grave adquirida em missão de serviço no exterior. Viu partir o seu conforto e guardião da família nuclear, sentiu-se desamparado mais as filhas Estela e Manuela, posteriormente deixadas às atenções e cuidados daqueles que, com estima cuidaram dele Aristides, como irmãos e prezados familiares.
Vários foram os íntimos da casa, a confortante companhia de familiares, de velhos e jovens companheiros, que tiveram o privilégio de partilhar os últimos anos da sua existência vivida intensamente, ouvindo as suas memórias, acolhendo a sua sapiência, até 22 de Setembro de 2012, dia em que partiu para nos deixar na dor de uma grande saudade pois, como país e povo independente que ele nos legou, senhor dos seus destinos, muito devemos ao primor da história que ele dedicou a Cabo Verde.
Essência do tributo
A homenagem (prestada e a ser prestada) é um enaltecimento das virtudes que pesaram no renascimento e prossecução de Cabo Verde, como uma narrativa sem fim, numa procura do passado que deve ser incessante, pelo dever da reconstituição de um histórico, cujo prestígio nos situa no presente e nos interpela a caminhar num sempre futuro.
As temáticas da récita que constituiu a homenagem a Aristides Pereira, conduziram de forma metódica à unidade do sentido, permitindo assim uma análise fecunda da quantidade e qualidade dos contributos do Homem.
Na noção exata das duras vulnerabilidades do seu país, dos riscos, perigos e desafios que sobre ele impendiam, pôs em prática uma estratégia de paz, assente numa estratégia política racional de não engajamento face aos conflitos interblocos que direta ou indiretamente pesavam sobre Cabo Verde.
Poderemos dizer que ele adotou uma análise dialética de neutralidade, numa espécie de contraponto do realismo ao idealismo face às antinomias de interesses que se fizeram sentir de vários espaços geopolíticos, na busca incessante do quanto une as cabo-verdianas e cabo-verdianos, negando sempre a fatalidade e, sobretudo, as provocações e tentações à submissão da nossa identidade cultural e política, numa vã tentativa de imoral esquecimento da nossa consciência histórica.
A sequência dos episódios que foram apresentados, forneceram três elementos estruturantes da personalidade de Aristides Pereira:
- (i) a estabilidade do seu ser;
- (ii) a sabedoria da sua praxis;
- (iii) os aspetos positivos e críticos das lembranças, prantos e complexidades vividas.
A narrativa Aristides Pereira conduz-nos à sua tonalidade própria, na sua especificidade e na sua coerência.
A História tem um sentido, convida o individuo a conter a sua natureza posicionando-a em conformidade com a razão da vida.
ESSE FOI O DESIGNIO QUE ARISTIDES PEREIRA IMPOS A ELE MESMO, para finalmente repousar no comedimento de Fundo das Figueiras que o viu nascer para a História.
Link com I parte do artigo: https://www.asemana.publ.cv/?Por-uma-recita-a-Aristides-Pereira-Legados-de-uma-existencia-I-parte&ak=1
....
* Sociólogo e presidente da Associação dos Combatentes da Liberdade da Pátria (ACOLP)