Retratos

A SEMANA : Primeiro diário caboverdiano em linha

São Vicente: Felicidade, mulher que nunca desistiu de lutar apesar das várias “infelicidades” da vida 08 Mar�o 2023

O nome Felicidade Joana Pires parece nada condizer com todas as “infelicidades” encontradas nos 85 anos de vida da santantonense que já passou por muito, mas nunca perdeu a garra e a vontade de viver.

São Vicente: Felicidade, mulher que nunca desistiu de lutar apesar das várias “infelicidades” da vida

Uma história contada pela Inforpress neste Dia Internacional da Mulher e que dá a conhecer o percurso de Felicidade Joana Pires, nome de baptismo, mas, para os mais próximos “Mãe” ou “Dadinha”, mulher que, apesar do nome, a vida lhe reservou várias vicissitudes a começar pela morte da mãe, vítima de uma febre de tétano, quando tinha sete anos de idade.

A partir daí, a santantonense, nascida em Martiene (Porto Novo) a 27 de Junho de 1937, teve que enfrentar, como disse, o “pão que o diabo amassou” ao ser criada por pessoas vizinhas, que até lhe davam de comer, mas, ainda assim, com alguns maus-tratos pelo meio, como ter os cabelos longos raspados quase até à raiz, com a justificativa de não criar piolhos.

Dadinha, como relatou, era também a que mais trabalhava em casa, com a obrigação de cuidar dos animais, ir ao campo, buscar água e ainda era a “responsável” por juntar folha de cana para servir de lenha para os cozinhados.

Uma realidade que a obrigou a amadurecer antes do tempo e aprender a desenrascar-se, mesmo sem nunca ter tido a oportunidade de frequentar a escola.

Sempre esperta, mesmo sem ter ninguém para a orientar, Felicidade começou a tomar consciência que não poderia continuar com esse destino aos 15 anos, quando decidiu se inscrever para ir trabalhar nas roças de São Tomé e Príncipe, mesmo sem idade para isso.

“Fui falar com o responsável e me disse que me levaria, mas, teria que me `comprar´ mais dois anos de idade, senão não me deixariam ir”, contou, com a consciência que já nessa idade já tinha “corpo, força e muita determinação para enfrentar qualquer coisa”.

Assim, em 1953, rumava para uma das roças do arquipélago, onde teve um dos primeiros rasgos de felicidade propriamente dita, mas, também muitas outras contrariedades.

Ali, em São Tomé, assegura ter encontrado o grande amor da sua vida, um português assistente de roça, que a “tratava muito bem” e com quem vislumbrava ter um futuro risonho, mas, que mudou quando este viajou para Portugal de licença, prometendo voltar para irem viver na cidade.

Mas, tal não aconteceu, porque no dia em que o assistente regressava à São Tomé, Dadinha, por sua vez, estava sendo “escorraçada” da roça pelo responsável, que, também cobiçava a preta linda de cabelos compridos, e não quis prolongar o seu contrato só para não se encontrar com o português, para quem ela só tinha olhos.

“Até nos encontramos no cais, eu já num barco que vinha para Cabo Verde e ele num que atracava vindo de Portugal. Por isso, que eu sempre digo que foram esses desgraçados que mudaram o meu destino”, lançou Dadinha, que foi obrigada a regressar à Martiene, mas, agora com uma criança de dois meses nos braços.

Agora não voltava só e sim com Maria do Nascimento da Cruz, filha sua que se fosse por sua vontade seria Maria da Luz Pires, mas, que teve o nome mudado só por “abuso” do escriturário dos registos que alegou poder fazer isso por ser ele a ter a caneta nas mãos.

Mesmo assim, Mariazinha, como carinhosamente a chamava, era a sua “joia” e sua companheira por quatro anos quando prometeu a si mesma que não iria partilhar a sua vida com nenhum outro homem.

Também Mariazinha era a joia da casa de Doroteia, mãe de criação de Dadinha, por ser branca e filha de português e, por isso, tratada a pão de ló, com direito aos melhores cuidados, enquanto a sua progenitora, a “criada do quintal” foi transformada na sua “ama-seca” e com direito a entrar na casa só para lhe dar de mamar.

Uma situação que aguentou só por um ano e pôs fim ao decidir voltar mais uma vez para São Tomé em 1957. E, mais uma vez, ali deparou-se com vários episódios de maus-tratos, abusos, assédio sexual e moral contra as suas colegas e até contra si.

Mas, no seu caso, não os deixava criar por sempre ripostar com uma resposta afiada, uma bofetada e até com ameaça de golpe de machim, como ameaçou a um capataz que tinha costume de dar bofetadas na cara de todas as mulheres com quem trabalhava.

“Por tudo que já tinha passado na vida não ia deixar que ninguém mais me pisasse, não tinha medo de os enfrentar”, assegurou, admitindo, que, por isso, os responsáveis das roças tinham receio e até respeito pela sua pessoa.

Santo Tomé também serviu para Dadinha conhecer o pai da sua segunda filha com quem regressou para Cabo Verde, concretamente para a ilha de São Vicente, após findar os três anos de contrato. O mesmo homem que a fez enfrentar também experiências de violência doméstica e a obrigou a buscar forças para também o “escorraçar” da sua vida.

Então com duas filhas no braço, só queria concentrar-se em procurar sustento para as três, mas, nesse entretanto, apaixonou-se pela terceira vez pelo pai dos outros oito filhos, que a fez voltar a São Tomé e Príncipe, também pela terceira vez, quando o marido foi como contratado, em 1963, e Dadinha foi atrás com o primeiro dos seus filhos nos braços.

A relação durou por mais de 20 anos, contudo, como considerou Dadinha, muito sustentada pela sua “força de vontade”, já que, o marido Humberto Évora, mostrou-se um “mulherengo”, que por fim fez a sua paciência esgotar-se e optar por ficar sozinha e terminar de criar os seus dez filhos, mas, agora desistindo de São Tomé e querendo somente ser “mninha de Soncent” (menininha de São Vicente, em português).

Mesmo neste “calvário”, não deixou de encontrar amigos que a permitiram conseguir trabalho, sustento e dinheiro para construir a sua própria casa, primeiro trabalhou no ex-Hotel 5 de Julho e depois, por ironia do destino, no Centro Juvenil Nhô Djunga, que albergava crianças carenciadas e em situação de rua, algo que tinha sido um dia, e onde tomou conta de dezenas “filhos”, alguns neste momento formados e que até hoje a reconhecem como a sua primeira mãe.

E foi do centro que se reformou, após 26 anos de serviço, e cuja pensão a permite se sustentar, juntamente com ajuda de alguns dos filhos que vivem no estrangeiro.

Entretanto, com a vida sempre madrasta, Dadinha ainda aos 83 anos teve de enfrentar uma outra infelicidade, a perda da sua Mariazinha há três anos, devido a um cancro, mas, nem isso a derrubou.
“A vida, temos de a enfrentar como ela é, não é pelo facto da idade e nem pelo facto de ser pobre que devo abandonar a minha vida. Se Deus me der uma dor de cabeça hoje, coloca fé que amanhã estarei melhor”, lançou, com a convicção de ter sempre pensamento positivo, já que, como diz, “cabeça é o lema do corpo”.

O Dia Internacional da Mulher, assinalado a 08 de Março, é uma data comemorativa que foi oficializada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1975.

Essa data simboliza a luta histórica das mulheres por condições equiparadas às dos homens. Inicialmente, essa data remetia à reivindicação por igualdade salarial, mas, actualmente, simboliza também a luta contra o machismo e a violência.
Suas sementes foram plantadas em 1908, quando 15 mil mulheres marcharam pela cidade de Nova York, EUA, exigindo a redução das jornadas de trabalho, salários melhores e direito ao voto.

A Semana com Inforpress

Os artigos mais recentes

100% Prático

publicidade


  • Mediateca
    Cap-vert

    Uhau

    Uhau

    blogs

    Copyright 2018 ASemana Online | Crédito: AK-Project