O ex-presidente defendeu, na entrevista esta quarta-feira ao diário Le Figaro, que a França deve cultivar as suas boas relações com a Rússia de Putin, num contínuo que é histórico entre as duas nações. Nesse sentido, propõe que a França repense "a ideia de que estamos em guerra com a Rússia", que nunca vai acontecer "porque somos vizinhos, queiramos ou não. Não podemos estar a entregar armas à Ucrânia, temos de atuar a nível diplomático, do direito internacional e melhorar as nossas relações" com a Rússia.
"A Rússia precisa de nós e nós precisamos da Rússia", escreve Sarkozy. Para muitos, a frase só é factual na primeira parte. A Rússia precisa da tecnologia ocidental, mas o "Ocidente" pode viver e avançar sem o gás russo, expressam os peritos.
A defesa de Putin, porém, leva Sarkozy — que conhece bem Putin, com quem se encontrou e conversou muito, com quem "estabeleceu uma relação de amizade que ultrapassou o tempo da sua presidência" — a sublinhar na entrevista os aspetos mais polémicos do seu livro Le Temps des combats/O Tempo dos Combates (ainda sem edição em português).
"A Ucrânia deve ceder territórios à Rússia"
Esta " proposta ultrajante", "vergonhosa" contida no último livro de Sarkozy indigna a esquerda francesa mas também antigos aliados do Sarkozy líder da direita e até dirigentes internacionais.
Nicolas Paul Stéphane Sarközy de Nagy-Bocsa — do seu nome completo com apelidos de origem húngara, simplificado em Nicolas Sarkozi (e sem o trema que só consta em documentos oficiais) — não se coíbe de escrever: "A Ucrânia deve ceder territórios à Rússia", referindo-se à Crimeia e ao Donbass, cuja anexação pela Rússia não é reconhecida pela comunidade internacional e que Zelensky reivindica como ucranianas.
Contudo, essa anexação — embora obtida pela força e considerada ilegal pelo direito internacional — é provável que não venha a ser revertida, já que as duas regiões têm uma maioria russófona. Deixar a Crimeia e o Donbass referendarem pela Rússia ou pela Ucrânia vem a dar no mesmo resultado favorável à parte russa.
Diplomacia é a via e Putin não é irracional
O ex-presidente, eleito pela direita francesa, insiste que o presidente Vladimir Putin "não é irracional" e que "com a diplomacia adequada" pode repetir-se o sucesso obtido em 2008 quando Sarkozy diz ter "convencido (Putin) a retirar os seus tanques da Geórgia".
É grave ouvir isto dum antigo presidente
As réplicas surgem em catadupa. O Nicolas Sarkozy comete "um terrível erro", ao agir como um influencer russo, segundo o deputado do Partido Verde Julien Bayou. Sarkozy comportou-se "como um lunático e é chocante que um antigo presidente possa dizer o que disse", disse este sábado Bayou na rádio CLI.
Jérôme Poirot, antigo conselheiro de segurança da presidência sob Sarkozy, classificou de "vergonhosa" a proposta. Além disso corrigiu a perspetiva de Sarkozy sobre uma alegada vitória da França e Alemanha em evitar uma terceira guerra mundial por reconhecerem as "linhas vermelhas" das fronteiras nacionais e vetarem a adesão à NATO da Geórgia e Ucrânia em abril de 2008.
Poirot, porém, aponta "o erro de compreensão de Sarkozy" que ainda não alcançou o quanto "a sua intervenção foi prejudicial". Quatro meses depois dos seus encontros com Putin, alega o ex-assessor, "o Kremlin enviou tanques contra a Geórgia, quatro anos depois foi a invasão da Crimeia".
Cécile Vaissié, historiadora e professora de Estudos Russos e Soviéticos, aponta que o apoio de Sarkozy à Rússia surge num contexto consistente em que a França mantém "relações especiais" com a Rússia desde a década de 1960 sob a presidência de Charles de Gaulle.
Embora esta perspetiva seja ainda partilhada por muitos franceses, tanto à esquerda como à direita, a verdade é que "neste contexto Sarkozy não pode falar pelos ucranianos", conclui a historiadora.
O quarto presidente da Estónia, Toomas Hendrik Ilves, não poupa nos piores adjetivos sobre a atuação sarkozyana na política internacional e em especial nas suas relações com a Rússia. Perante Putin, "Sarkozy foi extremamente venal", pelo que "as suas palavras de palhaço não são para levar a sério", tuítou este sábado. O ex-presidente estoniano (2006-2016), "um socialista", tem sido crítico à atuação dos seus sucessores na condução da república saída da ex-URSS. É assim que à chefe de Estado eleita pelo partido Pro Patria and Res Publica, de direita, atribui "a perda da boa reputação tão arduamente conquistada nestes trinta anos pós-independência".
Tempo volátil
Sobre o título do livro-memória da sua presidência, Sarkozy filosofa sobre a sua conceção do que é "o tempo" dum mandato presidencial e faz uma comparação desfavorável dos seus antecessores e sucessores.
"A minha filosofia", de que só conta o que foi feito, "nem sempre foi a dos meus antecessores e sucessores. François Mitterrand considerava-se o senhor do tempo. Emmanuel Macron pensa o mesmo hoje. Jacques Chirac igualmente e, no fundo, imaginava que a ação é vã. Eu, pelo contrário, penso que o tempo não nos pertence . A vida é curta e o mandato dum presidente é mais curto ainda, daí que eu não cultive a procrastinação".
Fontes: Le Figaro/France 24/Guardian